terça-feira, 9 de março de 2010

O precursor

(Texto originalmente escrito em 14 de setembro de 2009) Tenho poucas recordações das poucas vezes em que visitei meus avós paternos. As lembranças estão envelhecendo tal como as amareladas fotografias de mais de vinte anos atrás. Podem ser raras as lembranças, mas a herança de meus avós perdura infinitamente.

Meu pai é o filho mais velho de José e dona Gonçala. Nasceu em um tempo de seca. E antes mesmo de completar 10 anos de idade já carpia como um veterano. Tinhas mãos calejadas de trabalhar quando na realidade suplicava para estudar. Queria calos, mas calos de lápis. A insistência foi tamanha que minha avó economizou nas moedas e comprou o tão sonhado caderno de caligrafia.

Pronto. Francisco Assis Martins Fernandes já sabia escrever o próprio nome. Como a seca castigava o solo cearense, a pobreza castigava a vontade de estudar do pequeno “Axis”, como era carinhosamente chamado pelo pai. Entre um roçado e outro, o primogênito contemplava a imensidão da caatinga e se projetava além. Dominar a escrita seria apenas o primeiro passo rumo ao mundo novo.

Sob o apreço da mãe, aflita com a seca de recursos para realizar o sonho de estudar um filho, “Axis” continuou suportando a labuta dos dias de sol para se refrescar nos estudos à noite. Desvendou o segredo das letras conseguindo transformá-las em palavras. A leitura ampliou seu horizonte, e meu pai passou a se interessar cada vez mais pelo estudo. Estava decidido: queria estudar.

Já tinha seus 15, 16 anos quando tomou a decisão de fugir do lar para concretizar sua grande ambição. O desejo cresceu após um franco diálogo com o pai. Seu José disse ao filho que ele não poderia continuar os estudos. “Preciso de você trabalhando comigo.” “Axis” sempre foi um filho obediente e, a contragosto, acatou a decisão de seu pai.

Meu avô sabia que tinha cortado as asas do filho, que se consolou no carinho da mãe. Seu José, em silêncio, foi à cidade tentar encontrar uma solução ao desejo do filho. Homem honesto, era respeitado pela população de Ipueiras, que o tinha como exemplo de trabalho. Encontrou na amizade com a família Matos um modo de saciar a sede de estudo do “Axis”.

Para meu avó, a ideia era apenas oferecer um pouco mais de estudo ao filho. Não imaginou que nunca mais teria o exímio trabalhador da roça, que sabia manejar a “Tupi” como um samurai a espada.

Na aurora nordestina, meu pai subiu no lombo de um cavalo em direção à cidade. Voltou muitos anos depois após ter viajado pelo mundo e obtido graduações em jornalismo, teologia e filosofia e dominado, além da língua portuguesa, a espanhola, a francesa, a italiana e o latim. Porém, a imagem da despedida de casa, com seus pais e irmãozinhos acenando um “até breve”, permanece emoldurada na mente, no coração e na alma de meu pai.

(Legenda da foto: Já aposentado, meu velho Assis ainda tem a disposição do antigo "Axis" -- como diria meu avô.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário